Charles Le Gai Eaton, Ex-Diplomata Britânico (parte 1 de 6)
Descrição: A busca pela verdade de um filósofo e escritor, enfrentada com uma batalha interna constante para harmonizar crença e ação. Parte 1: Uma infância secular e uma menção da Arábia.
- Por Gai Eaton
- Publicado em 01 Apr 2013
- Última modificação em 01 Apr 2013
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Nasci na Suíça de pais britânicos, um filho da guerra. Na época de meu nascimento o tratado final de paz que terminou a primeira guerra mundial, o tratado com a Turquia, estava sendo assinado em Lausanne. A maior tempestade que tinha mudado a face do mundo tinha temporariamente se exaurido, mas seus efeitos estavam aparentes em todos os lugares. Antigas certezas e a moralidade baseada nelas tinham recebido um golpe mortal. Mas o histórico de minha família estava manchado com um conflito de sangue. Meu pai já com 67 anos quando nasci, tinha nascido durante as guerras contra Napoleão Bonaparte. Ambos tinham sido soldados...
Ainda assim, podia ter tido ao menos uma terra natal. Não tive. Embora nascido na Suíça, não era suíço. Minha mãe tinha crescido na França e amava a França acima de todos os outros países, mas eu não era francês. Era inglês?Nunca senti que fosse. Minha mãe nunca se cansava de lembrar-me de que o inglês era frio, estúpido, assexuado e sem intelecto e cultura. Não queria ser como eles. Então, a qual lugar pertencia, se é que pertencia a algum lugar? Parece-me, em retrospecto, que essa infância estranha foi uma boa preparação para a aderência ao Islã. Onde quer que tenha nascido e independente de raça, a terra natal do muçulmano é a Dar-ul-Islam, a Casa do Islã. Seu passaporte, aqui e na vida futura, é a simples confissão de fé La ilaha ill-Allah. Não espera – ou não deve esperar – segurança ou estabilidade nesse mundo e deve sempre ter em mente o fato de que a morte pode levá-lo amanhã. Não tem raízes firmes aqui nessa terra frágil. Suas raízes estão acima, naquilo que suporta sozinho.
Mas e o Cristianismo?Se meu pai tinha quaisquer convicções religiosas, nunca as expressou embora – em seu leito de morte, próximo dos 90 anos, tenha perguntado: “Existe um lugar feliz?” Minha educação foi deixada inteiramente ao encargo de minha mãe. Por temperamento ela não era, acho, irreligiosa, mas tinha crescido em uma estrutura religiosa e era hostil ao que é comumente chamado de religião organizada. De uma coisa estava certa: o filho dela deveria ser livre para pensar por si mesmo e nunca ser forçado a aceitar opiniões de segunda mão. Estava determinada a proteger-me de ter uma religião “enfiada goela abaixo”. Alertou uma sucessão de babás que iam e vinham na casa e nos acompanhavam para a França durante os feriados que se jamais falassem em religião comigo, seriam sumariamente demitidas. Quando tinha cinco ou seis anos, entretanto, suas ordens foram ignoradas por uma mulher jovem cuja ambição era tornar-se uma missionária na Arábia, salvando as almas daquele povo ignorante que estava – disse-me – perdido em uma crença pagã chamada “muçulmanismo”. Foi a primeira vez que ouvi da Arábia e ela traçou um mapa daquela terra misteriosa.
Um dia ela me levou para um passeio próximo à Prisão Wandsworth (morávamos em Wandsworth Common na época). Devo ter me comportado mal de alguma forma, porque ela pegou meu braço bruscamente e apontou para os portões da prisão dizendo:“Existe um homem de cabelos vermelhos no céu que o engolirá se for desobediente!” Foi a primeira vez que ouvi falar de “Deus” e não gostei do que ouvi. Por alguma razão estava com medo de homens de cabelo vermelho (como ela deve ter conhecido) e esse em particular morando acima das nuvens e dedicado a punir meninos desobedientes soava muito assustador. Perguntei a minha mãe sobre ele assim que cheguei em casa. Não me lembro o que ela disse para me confortar, mas a garota foi imediatamente demitida.
No fim, muito mais tarde do que a maioria das crianças, fui enviado para a escola ou, melhor dizendo, uma série de escolas na Inglaterra e Suíça antes de chegar, com a idade de 14, em Charterhouse. Certamente, com serviços religiosos na capela da escola e aulas em “Escritura” o Cristianismo deve ter tido algum impacto sobre mim? Não teve impacto nenhum, nem sobre mim e nem sobre meus colegas de escola. Isso não me surpreende. A religião não pode sobreviver, inteira e eficaz, quando está confinada a um único compartimento da vida e educação. A religião é inteira ou não é nada; ou sobrepuja todos os estudos profanos ou é sobrepujada por eles. Uma ou duas vezes por semana nos ensinavam sobre a Bíblia da mesma forma como éramos instruídos em outras disciplinas em outras aulas. Supunha-se que religião não tinha nada a ver com os estudos mais importantes que formavam a espinha dorsal de nossa educação. Deus não interferiu em eventos históricos, não determinou os fenômenos que estudamos nas aulas de ciência, não desempenhou nenhum papel nos eventos atuais e o mundo, governado inteiramente pelo acaso e por forças materiais, era para ser entendido sem referência a qualquer coisa que pudesse – ou não – existir além de seus horizontes. Deus estava além das necessidades...
E ainda assim precisava saber o significado de minha própria existência. Apenas aqueles que, em algum momento de suas vidas, tenham sido possuídos por tamanha necessidade podem ter ideia de sua intensidade, comparável àquela da fome física ou desejo sexual. Não via como podia colocar um pé na frente de outro a menos que compreendesse onde estava indo e por que. Não podia fazer nada a menos que compreendesse que parte minha ação desempenhava no esquema de coisas. Tudo que sabia é que nada sabia - nada, quero dizer, da mais leve importância - e estava paralisado por minha ignorância como se imobilizado por uma densa neblina.
Charles Le Gai Eaton, Ex-Diplomata Britânico (parte 2 de 6)
Descrição: A busca pela verdade de um filósofo e escritor, enfrentada com uma batalha interna constante para harmonizar crença e ação. Parte 2: Um dilema pessoal com religiões institucionalizadas.
- Por Gai Eaton
- Publicado em 08 Apr 2013
- Última modificação em 08 Apr 2013
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Onde devia buscar conhecimento?Quando estava com 15 anos descobri que havia algo chamado “filosofia” e que a palavra significava “amor à sabedoria”. Sabedoria era o que buscava, então a satisfação de minha necessidade devia estar escondida nesses livros pesados escritos por homens sábios. Com um sentimento de excitação intensa, como um explorador já avistando a terra não descoberta, entreguei-me a Descartes, Kant, Hume, Spinoza, Schopenhauer e Bertrand Russel, ou então lia trabalhos que explicavam seus ensinamentos. Não demorou muito para perceber que algo estava errado. Podia ter comido mosca em busca de alimento a partir dessa fonte. Esses homens não sabiam de nada. Estavam apenas especulando, tirando ideias de suas próprias pobres cabeças e qualquer um pode especular (incluindo um menino de escola). Como um garoto de 15 ou16 anos podia ter tido a insolência de descartar toda a filosofia secular ocidental como sem valor? Não é necessário ter maturidade para distinguir entre o que o Alcorão chama de dhann (“opinião”) e verdadeiro Conhecimento. Ao mesmo tempo, a insistência constante da minha mãe de que eu não devia me importar com o que os outros pensavam ou diziam me obrigava a confiar em meu próprio julgamento. A cultura ocidental tratava esses “filósofos” como grandes homens e alunos em universidades estudavam seus trabalhos com respeito. Mas o que era aquilo para mim?
Algum tempo depois, quando estava no sexto ano, um professor que ficou particularmente interessado em mim fez um comentário estranho, que não entendi. “Você é”, disse ele, “o único cético universal que conheci”. Ele não estava referindo-se especificamente à religião. Queria dizer que eu parecia duvidar de tudo que era tido como certo por todos. Queria saber por que se devia supor que nossos poderes racionais, tão bem adaptados para encontrar alimento, abrigo e um par, tinham uma aplicação além do campo mundano. Estava intrigado pela noção de que o mandamento “Não matarás” devia ser obrigatório para quem não era nem judeu ou cristão e também com o porquê de, em um mundo cheio de mulheres bonitas, a regra da monogamia devia ser ensinada como tendo uma aplicação universal. Duvidava até de minha própria existência. Muito tempo depois encontrei a história do sábio chinês, Chuangtzu, que, ao sonhar uma noite que era uma borboleta, acordou para questionar se era de fato o homem Chuangtzu que tinha sonhado ser uma borboleta ou uma borboleta sonhando ser Chuangtzu. Entendi o dilema dele.
Ainda assim, quando meu professor fez esse comentário, já tinha descoberto uma chave para o que poderia ser um conhecimento mais certo. Por acaso – embora não exista essa coisa de “acaso” – tinha visto um livro chamado “O Oceano Primordial” de certo professor Perry, um egiptólogo. O professor tinha uma ideia fixa de que os antigos egípcios tinham viajado para parte do mundo em seus barcos de papiros, divulgando sua religião e mitologia em locais bem distantes. Para provar sua teoria, tinha passado muitos anos pesquisando mitologias antigas e também os mitos e símbolos de povos “primitivos” de nosso tempo. O que revelou foi uma unanimidade surpreendente de crença, apesar das diferenças entre as imagens nas quais a crença fosse expressa. Não tinha provado sua teoria sobre os barcos de papiros; tinha, acho, provado algo muito diferente. Parecia que, por trás da complexidade de formas e imagens, havia certas verdades universais em relação à natureza da realidade, da criação do mundo e da humanidade, e o significado da experiência humana; verdades que eram parte de nosso sangue e de nossos ossos.
Uma das principais causas da descrença no mundo moderno é a pluralidade de religiões que parecem mutuamente contraditórias. Enquanto os europeus estavam convencidos de sua própria superioridade racial, não tinham razão para duvidar do Cristianismo como a única fé verdadeira. A noção de que eram o auge do “processo evolucionário” facilitou a suposição de que todas as outras religiões não eram mais que tentativas ingênuas de responder a questões eternas. Foi quando a autoconfiança racial declinou que as dúvidas surgiram. Como era possível para um Deus bom permitir que a maioria dos seres humanos vivesse e morresse a serviço de falsas religiões? Não era mais possível para o cristão acreditar que somente ele estava salvo?Outros faziam a mesma reivindicação – os muçulmanos, por exemplo - então como alguém podia estar seguro sobre quem estava certo e quem estava errado? Para muitas pessoas, incluindo eu mesmo até chegar ao livro de Perry, a conclusão óbvia era que, já que todos não podiam estar certos, todos deviam estar errados. A religião era uma ilusão, o produto de fantasia. Outros podiam ter achado possível substituir “verdade científica” por “mitos” religiosos. Eu não podia, uma vez que a ciência foi fundada sobre suposições em relação à infalibidade da razão e a realidade sentido-experiência que nunca poderia ser provada.
Quando li o livro de Perry não sabia nada do Alcorão. Isso aconteceu muito tempo depois e o pouco que tinha ouvido sobre o Islã era distorcido por preconceitos acumulados durante milhares de anos de confrontos. Ainda assim, sem saber já tinha dado um passo na direção do maior rival do Cristianismo. O Alcorão assegura-nos de que nenhum povo na terra foi deixado sem orientação divina e uma doutrina de verdade, transmitida através de um mensageiro de Deus que sempre falou para o povo em sua própria “língua” e, consequentemente, em termos de suas circunstâncias particulares e de acordo com suas necessidades. O fato de que essas mensagens foram distorcidas no curso do tempo não precisa ser mencionado e ninguém devia ficar surpreso se a verdade é distorcida à medida que passa de geração para geração, mas seria surpreendente se não existissem vestígios depois da passagem de séculos. Agora me parece inteiramente de acordo com o Islã acreditar que esses vestígios, revestidos de mitos e símbolos (a “língua” do povo dos tempos primitivos), descendem diretamente da Verdade revelada e confirmam a Mensagem final.
Charles Le Gai Eaton, Ex-Diplomata Britânico (parte 3 de 6)
Descrição: A busca pela verdade de um filósofo e escritor, enfrentada com uma batalha interna constante para harmonizar crença e ação. Parte 3: Sabedoria na mente sem a penetração de substância humana e a descoberta de Deus.
- Por Gai Eaton
- Publicado em 08 Apr 2013
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De Charterhouse fui para Cambridge, onde negligenciei meus estudos oficiais que pareciam triviais e entediantes, a favor de estudar somente o que importasse. O ano era 1939. A guerra tinha começado pouco antes de eu ir para a universidade e, em dois anos, estaria no exército. Parecia provável, no fim das contas, que os alemães teriam sucesso em matar-me como sempre pensei que teriam. Tinha pouco tempo para encontrar as respostas para as perguntas que continuavam a me obcecar, mas isso não me atraiu para nenhuma religião organizada. Como a maioria de meus amigos, desdenhava as igrejas e todos que apenas falavam de um Deus que não conheciam, mas logo fui obrigado a moderar essa hostilidade. Lembro-me da cena claramente depois de mais de meio século. Alguns de nós ficamos um pouco mais, bebendo café, depois da refeição noturna no salão do Kings College. A conversa voltou-se para religião. Na cabeceira da mesa sentou um aluno que era universalmente admirado por seu brilhantismo, inteligência e sofisticação. Na expectativa de admirá-lo e tirando vantagem de um breve silêncio, disse: “Nenhuma pessoa inteligente hoje em dia acredita no Deus da religião!” Ele olhou para mim de forma triste antes de responder: “Pelo contrário, hoje em dia pessoas inteligentes são somente aquelas que acreditam em Deus”. Eu quis desaparecer debaixo da mesa.
Tinha, entretanto, um sábio amigo, um homem quarenta anos mais velho, que considerava totalmente convincente. Era o escritor L.H.Myers, descrito na época como “o único romancista filosófico que a Inglaterra produziu”. Seu trabalho mais importante ‘The Root and the Flower’ (“A Raiz e a Flor”, em tradução livre) não só respondeu a muitas dessas questões que me atormentavam, mas transmitiu um senso maravilhoso de serenidade com compaixão. Parecia-me que aquela serenidade era o maior tesouro que alguém podia possuir nessa vida e aquela compaixão era a maior virtude. Aqui, certamente, estava um homem que nenhuma tempestade abalava e que pesquisou o redemoinho da existência humana com o olho da sabedoria. Escrevi para ele, que respondeu prontamente. Pelos próximos três anos correspondemo-nos pelo menos duas vezes ao mês. Abri meu coração para ele enquanto que ele, convencido de que finalmente tinha encontrado nesse jovem admirador alguém que verdadeiramente o entendia, respondia no mesmo estilo. Finalmente nos encontramos e isso cimentou nossa amizade.
Ainda assim as coisas não eram como pareciam. Comecei a detectar em suas cartas uma nota de tormento, tristeza e desilusão internos. Quando lhe perguntei se tinha posto toda sua serenidade em seus livros, não deixando nada para si mesmo, ele respondeu: “Acho que seu comentário foi perspicaz e provavelmente verdadeiro.” Tinha dedicado toda sua vida à busca de prazer e de “experiências” (sublimes e sórdidas, como ele mesmo disse). Poucas mulheres, na alta ou baixa sociedade, tinham sido capazes de resistir à sua estonteante combinação de riqueza, charme e boa aparência. Ele de seu lado, não tinha razão para resistir às seduções delas. Fascinado pelo espiritualismo e misticismo, não aderiu a nenhuma religião e não obedeceu a nenhuma lei moral convencional. Agora sentia que estava envelhecendo e não conseguia enfrentar a possibilidade. Tinha tentado modificar-se e até arrepender-se de seu passado, mas era muito tarde. Pouco mais de três anos após nossa correspondência ter começado, cometeu suicídio.
Minha afeição por ele resistiu e, no devido tempo, dei o nome dele ao meu filho mais velho, mas a morte de Leo Myers me ensinou mais do que eu jamais poderia ter aprendido em seus livros, embora tenham sido necessários alguns anos para que eu entendesse seu significado pleno. Sua sabedoria tinha estado apenas em sua cabeça. Nunca havia penetrado sua substância humana. Um homem podia passar uma vida lendo livros espirituais e estudando os escritos dos grandes místicos. Podia sentir que penetrou os segredos dos céus e da terra, mas a menos que seu conhecimento seja incorporado à sua natureza e lhe transformado, foi estéril. Comecei a suspeitar que um simples homem de fé, orando a Deus com pouco entendimento, mas de todo o coração, podia valer mais que a maioria dos estudantes instruídos das ciências espirituais.
Myers tinha sido profundamente influenciado por um estudo do Vedanta, a doutrina metafísica no centro do Hinduísmo. O interesse de minha mãe em raja ioga já tinha me apontado essa direção. O Vedanta tornara-se meu principal interesse e, no fim, o caminho que me levou ao Islã. Isso pode parecer chocante para a maioria dos muçulmanos e surpreendente para quem estiver ciente de que a base do Islã é uma condenação inflexível da idolatria e, ainda assim, o meu caso não é de forma alguma único. Quaisquer que possam ser as crenças das massas hindus, o Vedanta é uma doutrina de unidade pura, da Realidade única e, portanto, do que no Islã é chamado de Tawhid. Os muçulmanos, mais que os outros, deviam ter pouca dificuldade no entendimento de que uma doutrina de Unidade perpassa todas as religiões que têm alimentado a humanidade desde o início, independente das ilusões idólatras que possam ter sobrepujado “a joia no lótus”, assim como, no indivíduo, a idolatria pessoal se sobrepõe ao âmago do coração. Como poderia ser diferente, uma vez que o Tawhid é a Verdade e, nas palavras de um grande místico cristão, “a Verdade é inerente ao homem”?
Logo meu período em Cambridge terminou e fui enviado para o Royal Military College, em Sandhurst, emergindo depois de cinco meses como um jovem oficial supostamente pronto para matar ou ser morto. Para aprender mais sobre as artes da guerra fui despachado, no que era chamado de “anexo”, para um regimento no norte da Escócia. Aqui fui deixado por minha própria conta e ocupei meu tempo lendo ou caminhando nas montanhas de granito sobre o intenso mar do norte. Era um lugar de tempestades, mas senti-me em paz como nunca tinha acontecido antes. Quanto mais lia o Vedanta e também a antiga doutrina chinesa do Taoísmo, mais certo estava de que finalmente tinha algum entendimento da natureza das coisas e tinha vislumbrado, nem que fosse apenas em pensamento e imaginação, a Realidade última, ao lado da qual tudo era pouco mais que um sonho. Ainda assim não estava preparado para chamar essa Realidade de “Deus”, menos ainda de Allah.
Charles Le Gai Eaton, Ex-Diplomata Britânico (parte 4 de 6)
Descrição: A busca pela verdade de um filósofo e escritor, enfrentada com uma batalha interna constante para harmonizar crença e ação. Parte 4: T. S. Eliot e o primeiro livro de Gai.
- Por Gai Eaton
- Publicado em 15 Apr 2013
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Quando deixei o exército comecei a escrever porque precisava expressar meus pensamentos, como forma de ordená-los. Escrevi sobre Vedanta, Taoísmo e Zen Budismo, mas também sobre certos escritores ocidentais (incluindo Leo Myers) que tinham sido influenciados por essas doutrinas. Através de um encontro por acaso com o poeta T.S. Eliot, que era na época diretor de uma editora, esses ensaios foram publicados sob o título “The Richest Vein” (“A Veia Mais Rica”, em tradução livre), uma citação tirada de Thoreau:“Meu instinto me diz que minha cabeça é um órgão para escavação, assim como algumas criaturas usam seus focinhos ou patas dianteiras, e com ela eu escavarei meu caminho através dessas montanhas. Acho que a veia mais rica está em algum lugar por aqui...” Mas agora eu tinha um novo guia através das montanhas. Tinha descoberto Rene Guenon, um francês que havia morado a maior parte de sua vida no Cairo como sheik Abdul Wahid.
Guenon minou e então, como um rigor intelectual inflexível, demoliu todas as suposições tidas como certas pelo homem moderno, no caso aqui o homem ocidental ou ocidentalizado. Muitos outros tinham criticado a direção adotada pela civilização europeia desde a chamada “Renascença”, mas ninguém tinha ousado ser tão radical como ele foi ou a reafirmar com tamanha força os princípios e valores que a cultura ocidental tinha sepultado no lixo da história. Seu tema era a “tradição primordial” ou Sofia perennis, expressa – assim ele afirmou – tanto nas mitologias antigas quanto na doutrina metafísica na raiz das grandes religiões. A língua dessa tradição era a linguagem do simbolismo e ele não tinha iguais em sua interpretação desse simbolismo. Além disso, virou a ideia do progresso humano de cabeça para baixo, substituindo-a pela crença quase universal anterior à idade moderna de que a humanidade declina em excelência espiritual com a passagem do tempo e que estamos agora na Idade das Trevas, que precede o Fim. Uma era na qual todas as possibilidades rejeitadas pelas culturas anteriores foram jogadas no mundo, com a quantidade substituindo a qualidade e a decadência se aproximando de seu limite final. Ninguém que o lesse e entendesse poderia continuar o mesmo.
Como outros cujos pontos de vista foram transformados pela leitura de Guenon, eu era agora um estranho no mundo do século vinte. Ele tinha sido levado pela lógica de suas convicções a aceitar o Islã, a Revelação final e a culminação de tudo que veio antes. Não estava pronto para isso ainda, mas logo aprendi a ocultar minhas opiniões ou a, pelo menos, velá-las. Ninguém pode viver feliz em desacordo constante com seus semelhantes, nem pode engajar em argumentação com eles se não compartilha de suas suposições básicas e não ditas. Argumento e discussão pressupõem algo em comum compartilhado pelos envolvidos. Quando não existe ponto em comum, a confusão e os maus entendidos, e até a raiva, são inevitáveis. As crenças que são a base da cultura contemporânea são mantidas de forma não menos passional do que a crença religiosa inquestionável, como foi ilustrado durante o conflito sobre o romance de Rushdie, “Os Versos Satânicos”.
Ocasionalmente esqueço-me de minha determinação de não me envolver em argumentos infrutíferos. Alguns anos atrás fui convidado para um jantar diplomático em Trinidad. A jovem mulher ao meu lado estava falando com um ministro cristão, um inglês, sentado do lado oposto. Estava participando parcialmente da conversa quando a ouvi dizer que não tinha certeza se acreditava no progresso humano. O ministro a respondeu de forma tão rude e com tal desprezo que não pude resistir a tentação de dizer: “Ela está certa - não existe essa coisa chamada progresso!” Ele voltou-se para mim com seu rosto contorcido de fúria e disse:“Se eu achasse isso cometeria suicídio essa noite mesmo!” Como o suicídio é um grande pecado para os cristãos, assim como o é para os muçulmanos, entendi pela primeira vez a extensão do quanto a fé no progresso, em um “futuro melhor” e, por implicação, na possibilidade de um paraíso na terra, substituiu a fé em Deus e na vida futura. Nos escritos do pastor renegado Teilhard de Chardin, o Cristianismo em si foi reduzido a uma religião de progresso. Prive o ocidental moderno dessa fé e ele está perdido em um deserto sem placas de sinalização.
Quando “The Richest Vein” foi publicado tinha deixado a Inglaterra para ir para a Jamaica, aonde um colega de escola iria me encontrar trabalho de algum tipo. Fui descrito na capa do livro como “um pensador maduro”. O adjetivo “maduro” era singularmente inadequado: como homem e também como personalidade, mal tinha emergido da adolescência e a Jamaica era um lugar ideal para exercitar as fantasias adolescentes. Aqueles com alguma experiência da vida nas Índias Ocidentais nos anos pós-guerra podem entender as delícias e tentações que oferecia aos que buscavam “experiência” e aventuras sexuais. Como Myers, não tinha limites morais que pudessem ter me refreado. Fiquei embaraçado quando comecei a receber cartas de pessoas que tinham lido meu livro e imaginavam que eu era um homem idoso – “com uma longa barba branca”, como uma delas me escreveu – cheio de sabedoria e compaixão. Queria poder tirar a ilusão delas o mais rápido possível e me livrar da responsabilidade que estavam colocando sobre mim. Um dia um padre católico chegou à ilha para ficar com amigos; ele tinha, disse a eles, acabado de ler um “livro fascinante” de alguém chamado Gai Eaton. Ficou atônito em ouvir que o autor estava na Jamaica e perguntou como poderia me encontrar. Seus amigos o levaram a uma festa na qual lhe disseram que eu poderia ser encontrado. Ele foi apresentado e, ao ver diante dele um homem jovem e tolo, olhou-me longa e duramente. Então balançou a cabeça com incredulidade e disse em voz baixa: “Você não pode ter escrito aquele livro!”
Charles Le Gai Eaton, Ex-Diplomata Britânico (parte 5 de 6)
Descrição: A busca pela verdade de um filósofo e escritor, enfrentada com uma batalha interna constante para harmonizar crença e ação. Parte 5: Um emprego no Cairo.
- Por Gai Eaton
- Publicado em 15 Apr 2013
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Estava certo e enfrentei, como tinha feito no caso de Leo Myers e tenho feito e muitas ocasiões desde então, as contradições extraordinárias na natureza humana e, acima de tudo, o golfo que com frequência separa o escritor colocando suas ideias no papel do mesmo homem em sua vida pessoal. Embora o objetivo no Islã seja alcançar um equilíbrio perfeito entre elementos diferentes na personalidade para que trabalhem juntas de forma harmoniosa, apontem na mesma direção e sigam o mesmo caminho reto, é comum no ocidente encontrarmos pessoas que são completamente desequilibrados, tendo desenvolvido um lado delas mesmas à custa de todos os outros. Às vezes tenho me questionado se escrever ou falar sobre sabedoria não pode ser um substituto para alcançá-la. Esse não é exatamente um caso de hipocrisia (embora o dito “Médico, cure-se!” seja aplicável) uma vez que essas pessoas são totalmente sinceras no que escrevem ou dizem. De fato, isso pode expressar o que há de melhor nelas, mas não podem viver de acordo com o que dizem ou escrevem.
Depois de dois anos e meio voltei para a Inglaterra por razões familiares. Entre aqueles que tinham escrito para mim após lerem meu livro havia dois homens profundamente versados nos escritos de Guenon que o tinham seguido no caminho do Islã... Encontrei-me com eles. Disseram que eu podia encontrar o que obviamente estava procurando, não na Índia ou China, mas mais perto de casa e dentro da tradição abrâmica... Perguntaram quando eu pretendia começar a praticar o que pregava e buscar um “caminho espiritual”. Era hora, sugeriram de forma gentil, mas firme, de eu pensar em incorporar em minha própria vida o que já conhecia teoricamente. Respondi de forma educada, mas evasiva, sem intenção de seguir o conselho até que fosse muito mais velho e tivesse exaurido as possibilidades de aventuras mundanas. Entretanto, comecei a ler sobre o Islã com interesse crescente.
Esse interesse despertou a desaprovação de meu amigo mais próximo que tinha trabalhado no Oriente Médio e tinha desenvolvido um forte preconceito contra o Islã. A noção de que essa religião dura tinha uma dimensão espiritual parecia absurda para ele. Era, assegurou ele, nada mais que formalismo exterior, obediência cega a proibições irracionais, orações repetitivas, intolerância e hipocrisia inflexíveis. Contou-me histórias de práticas islâmicas que, achou, me convenceriam. Lembro-me do caso em particular que mencionou de uma jovem mulher morrendo dolorosamente no hospital que tinha reunido forças para mover com os pés seu leito de ferro, para que morresse voltada para Meca. Meu amigo estava enojado pelo pensamento de que ela tinha aumentado seu próprio sofrimento em nome de uma “superstição estúpida”. Para mim, ao contrário, parecia uma história maravilhosa. Fiquei maravilhado com a fé dessa jovem mulher, tão distante de qualquer estado mental que eu pudesse imaginar.
Enquanto isso, não conseguia encontrar trabalho e vivia na pobreza. Candidatei-me a quase todos os trabalhos que vi anunciados, incluindo o posto de conferencista adjunto em Literatura Inglesa na Universidade do Cairo. Era tolice ou assim pensei. Tinha me graduado em História na Universidade de Cambridge e não sabia nada de literatura antes do século dezenove. Como poderiam considerar dar emprego a alguém tão desqualificado? Mas eles consideraram e me deram o emprego. Em outubro de 1950, com a idade de 29 anos, parti para o Cairo no momento em que meu interesse no Islã estava se enraizando.
Entre meus colegas estava um muçulmano inglês, Martin Lings, que fez seu lar no Egito. Era amigo de Guenon, um amigo também dos dois homens com quem havia conversado em Londres, e era diferente de qualquer um que já tivesse encontrado antes. Era a personificação viva do que, até então, não tinham sido mais do que teorias em minha mente e sabia que tinha finalmente encontrado alguém inteiro, completo e consistente. Vivia em uma casa tradicional fora da cidade e visitá-lo e à sua esposa, como fiz quase todas as semanas, era sair do rebuliço barulhento do Cairo moderno e entrar em um refúgio intemporal, no qual o interno e o externo não estavam divididos e as supostas realidades do mundo com as quais estava acostumado tinham uma existência indefinida.
Charles Le Gai Eaton, Ex-Diplomata Britânico (parte 6 de 6)
Descrição: A busca pela verdade de um filósofo e escritor, enfrentada com uma batalha interna constante para harmonizar crença e ação. Parte 6: Uma semente dá frutos.
- Por Gai Eaton
- Publicado em 22 Apr 2013
- Última modificação em 22 Apr 2013
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Precisava de um refúgio. Tinha me apaixonado pela Jamaica, se é que é possível apaixonar-se por um lugar, e odiava o Egito simplesmente porque não era a Jamaica. Onde estavam minhas montanhas azuis, meu mar tropical, minhas belas garotas das Índias Ocidentais?Como podia ter deixado o único local em que me senti em casa? Mas isso não era tudo, longe disso; tinha deixado não apenas um lugar, mas também uma pessoa, uma jovem mulher sem a qual a vida parecia agora vazia e sem valor. Aprendi então o que a palavra “obsessão” realmente significa: uma lição dolorosa, mas útil para aqueles que tentam compreender a si mesmo e os outros. Nada em minha vida prévia tinha qualquer valor; a realidade era minha necessidade pela única pessoa que ocupava meus pensamentos de manhã à noite e entrava nos meus sonhos. Quando, no curso dos meus deveres, li poesia romântica para meus alunos, lágrimas escorreram por minhas bochechas e eles disseram uns para os outros: “Aqui está um inglês com coração. Pensávamos que todos os ingleses fossem frios como gelo!”
Esses alunos, particularmente um grupo pequeno de cinco ou seis alunos mais velhos, também eram um refúgio. Podia odiar o Egito por estar a quase 13.000 quilômetros de onde queria estar, mas amava esses jovens egípcios. Alegrava-me com sua cordialidade, franqueza e a verdade que colocavam em mim para ensiná-los o que precisavam saber e logo comecei a amar sua fé, porque esses jovens eram bons muçulmanos. Não tinha mais dúvidas. Se algum dia achasse possível comprometer-me com uma religião - aprisionar-me em uma religião - só podia ser o Islã. Mas ainda não! Pensei na súplica de Santo Agostinho: “Senhor, faça-me casto, mas não agora”, sabendo que através das épocas outros homens jovens, achando que tinham um oceano de tempo à sua frente, haviam orado por castidade ou virtude ou um modo de vida melhor, mas com a mesma reserva, e muitos haviam sido levados pela morte nesse mesmo estado.
Se tudo continuasse na mesma, eu poderia nunca ter superado minhas hesitações. Com a intenção de no fim aceitar o Islã, podia ter adiado o ato decisivo ano após ano e continuar dizendo “Ainda não!” quando a velhice chegasse. Mas as coisas não continuaram na mesma. A saudade da Jamaica e por aquela pessoa cresceram, ao invés de diminuírem à medida que os meses passaram, como se alimentando de si mesmas. Acordei uma manhã para a percepção de que apenas a falta de dinheiro me impedia de voltar para a ilha. Perguntei e descobri que se viajasse no deck de um navio a vapor, podia fazer a viagem por 70 libras. Tinha certeza de que podia economizar essa quantia até o fim do semestre universitário e minha vida foi transformada de uma só vez. Sabendo que a saída estava próxima, pude até começar a desfrutar do Cairo. Mas uma questão demandava agora uma resposta firme e a resposta não podia mais ser adiada. A oportunidade de entrar no Islã podia nunca chegar novamente. Diante de mim estava uma porta aberta. Pensei que se não passasse por ela, a porta poderia se fechar para sempre. Ainda assim sabia que tipo de vida estaria vivendo na Jamaica e duvidava se teria a força de caráter para viver como muçulmano naquele ambiente.
Tomei uma decisão que devia, com boa razão, parecer chocante para a maioria das pessoas e não apenas para meus companheiros muçulmanos. Decidi - como coloquei para mim mesmo - “plantar a semente” em meu coração, aceitar o Islã de uma vez na esperança de que a semente um dia germinasse e crescesse uma planta saudável. Não daria desculpas para isso, não responsabilizaria ninguém de acusar-me de falta de sinceridade e falsa intenção. Mas é possível que estivessem subestimando a disposição de Deus para perdoar a fraqueza humana e Seu poder para produzir plantas e frutos de uma semente plantada em solo estéril. Em qualquer caso, estava sob um tipo de compulsão e sabia o que tinha que fazer. Fui para Martin Lings, contei minha história e pedi a ele para fazer minha Shahada, em outras palavras, para aceitar meu testemunho de fé. Embora hesitante a princípio, ele o fez. Cheio de medo e, ao mesmo tempo, feliz, orei pela primeira vez em minha vida. No dia seguinte, porque era Ramadã, jejuei, algo que nunca pude me imaginar fazendo. Logo depois contei a notícia aos meus alunos mais velhos e a satisfação deles foi como um abraço caloroso. Achava antes que era próximo deles, mas agora entendi que sempre tinha havido uma barreira entre nós. Agora a barreira foi derrubada e fui aceito como seu irmão. Nas seis semanas que faltavam antes de minha partida secreta (não havia contado ao chefe do departamento que estava partindo), um deles veio todos os dias para me ensinar o Alcorão. Olhei para meu reflexo no espelho. O rosto era o mesmo, mas ocultava uma pessoa diferente. Era um muçulmano! Ainda em estado de admiração embarquei no navio em Alexandria e naveguei para um futuro incerto.
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